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O dia em que Foucault “se perdeu” nas ladeiras de Ouro Preto

O avião cortava as nuvens do inverno brasileiro quando Michel Foucault chegou a Minas Gerais. Vinha do Rio, de uma temporada de palestras que o havia deixado fascinado com a “avidez de saber” dos estudantes brasileiros. A ditadura militar vigiava tudo, mas o filósofo francês não parecia se intimidar.

O dia em que Foucault se perdeu nas ladeiras de Ouro Preto
A passagem do filósofo francês por Minas Gerais, em 1973, influenciou a luta antimanicomial brasileira — Imagem ilustrativa produzida por Inteligência artifical

Trazia na mala livros, anotações, um sorriso de canto e a curiosidade intacta. Falava de poder, de corpos e de prisões, mas queria ver o que chamava de “a vida concreta da loucura”, algo que, no Brasil, ganhava contornos brutais.

Em Belo Horizonte, aguardava-o um homem que o leria não como ídolo, mas como igual.

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Outubro Rosa

Ronaldo Simões Coelho era um mineiro de fala rápida e olhar cético. Chefe do Serviço de Saúde Mental do Estado, acreditava que o sofrimento mental não cabia em grades. No entanto, todos os dias, assinava relatórios de hospitais que pareciam matadouros.

“Era o inferno”, diria décadas depois, lembrando-se do Hospital Colônia de Barbacena, onde mais de 60 mil pessoas morreram ao longo de décadas de silêncio.

Quando soube que o autor de História da Loucura viria a Minas, Simões o convidou para ver de perto um país que também tinha seus manicômios. E Foucault aceitou.

O encontro se deu em maio de 1973. A jornalista Daniela Arbex, em Holocausto Brasileiro, conta que os dois se reconheceram de imediato: “Um filósofo que falava de instituições que matam; um psiquiatra que as conhecia por dentro”.

Depois das palestras em Belo Horizonte, Simões propôs algo simples: mostrar ao visitante francês as cidades do ouro, as ladeiras onde o barroco mineiro se misturava à fé e à culpa.

Juntaram-se ao grupo o sociólogo Daniel Defert, companheiro de Foucault, e o professor Célio Garcia, tradutor e amigo da turma. O governo mineiro cedeu uma caminhonete rural branca — “versão familiar do Jeep”, descreve Arbex. No porta-malas, além de malas e livros, havia um odre cheio de cachaça.

O trajeto: Congonhas, Tiradentes, São João del-Rei, Mariana e, por fim, Ouro Preto.

O francês parecia fascinado com tudo: o cheiro de café coado nas pousadas, o barulho de sinos que marcava a hora das missas, o sotaque das pessoas. Ria de si mesmo ao tentar repetir palavras como “tropeiro” e “torresmo”.

Em Mariana, o grupo entrou no Museu Arquidiocesano de Arte Sacra. O ar era denso, misto de incenso e mofo. As imagens sacras, de santos e anjos, estavam mutiladas.

Foucault observou longamente uma escultura sem braços e perguntou:

“Por que tantos santos quebrados?”

Simões respondeu com a praticidade mineira:

“O pessoal escondia ouro dentro. Contrabando colonial, doutor”.

O filósofo sorriu.

Na Europa, arrancavam os braços por vingança. Faziam promessas que não se cumpriam, e então castigavam os santos“.

A resposta veio com o tom de quem transforma o cotidiano em pensamento. Foucault falava de fé, castigo e poder, e o pequeno grupo ouvia em silêncio, como se presenciasse uma aula ao ar livre.

Arbex narra a cena com precisão:

“Ali, entre santos mutilados, Foucault deu uma aula sobre promessas e punições, como se o tempo e o espaço se curvassem diante da força de sua interpretação.”

Ouro Preto, 5 de junho de 1973

No último dia, chegaram a Ouro Preto. As ladeiras pareciam escorregar sob o peso da garoa. A neblina descia pelos telhados e o som dos sinos misturava-se ao ruído das botas nas pedras.

Daniela Arbex e fontes acadêmicas reconstituem a visita de Michel Foucault à cidade histórica mineira — Crédito: AFP

Foram jantar em um restaurante pequeno, iluminado por velas. Cachaça, lombo, feijão-tropeiro e torresmo. Foucault comeu com prazer e elogiou o tempero “violento, mas sábio”. Riu do ardor da pimenta e brindou à saúde de todos.

No final da noite, Ronaldo Simões tirou do bolso um papel pardo e desenhou ali mesmo uma caricatura de Foucault: o rosto redondo, os óculos, o sorriso. O filósofo autografou o desenho. Leila Dias e Lúcia Maria Ferrara Barbosa assinaram como testemunhas. O papel ainda existe, guardado emoldurado, com a inscrição: “Para Ronaldo, Michel Foucault.”

“Em solo mineiro, o pensador deixou sua marca ao disseminar suas ideias”, escreveu Arbex.

“O filósofo francês se despediu entre risadas e copos de cachaça, sem saber que seu nome ecoaria nas futuras batalhas da psiquiatria brasileira.”

O eco

Seis anos depois, em 1979, o mesmo Ronaldo Simões Coelho subiu ao palco do III Congresso Mineiro de Psiquiatria e disse o que ninguém se atrevia a dizer:

“Os alimentos são jogados em cochos, e os doentes avançam para comer. O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada.”

Foi demitido logo depois. Mas suas palavras incendiaram consciências.

Pesquisas acadêmicas posteriores, como as da Universidade Federal de Pernambuco, registram que “a visita de Michel Foucault ao Brasil, em 1973, influenciou diretamente psiquiatras mineiros que, a partir de então, começaram a denunciar os hospitais psiquiátricos, especialmente o de Barbacena”.

A amizade entre o filósofo e o médico foi breve, mas transformadora. O que começou como um passeio turístico virou uma epifania intelectual.

A lembrança

Hoje, nas ladeiras de Ouro Preto, ninguém lembra o dia exato em que Michel Foucault passou por ali. Nenhuma placa o menciona, nenhum busto o celebra.

Mas, em uma parede de Belo Horizonte, ainda há a caricatura desenhada por Simões. Nela, o rosto calmo de um pensador que, entre santos mutilados e copos de cachaça, ajudou um médico a encontrar coragem para desafiar um país inteiro.

Fontes utilizadas:

Holocausto Brasileiro, Daniela Arbex (Record, 2013) — capítulos “Turismo com Foucault” e “O médico dos loucos”

– Estudos acadêmicos sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira, Universidade Federal de Pernambuco (2019)

– Entrevistas e registros públicos sobre Ronaldo Simões Coelho e Michel Foucault no Brasil (PUC-Rio, UFMG, 1973).

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